terça-feira, 25 de novembro de 2014

Para jornalista, prender usuário de drogas é desperdício

Glenn Greenwald, que revelou espionagem da NSA, virou consultor de grupo que defende regulação e controle de entorpecentes

FERNANDA MENADE SÃO PAULO
O jornalista americano Glenn Greenwald, 47, tornou-se conhecido no ano passado por revelar que a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA) espionava governos, empresas e civis em todo o mundo.
Os documentos lhe foram revelados pelo ex-agente da NSA Edward Snowden, que hoje mora na Rússia, na condição de asilado político.
Quatro anos antes de denunciar a espionagem global americana, Greenwald se notabilizou no debate sobre drogas ao publicar um estudo sobre a descriminalização das drogas em Portugal.
Lá, desde 2001, consumir entorpecentes não é crime, mas uma infração passível de multa e cuja reincidência leva a aconselhamento e tratamento, e não à cadeia.
Nesta segunda (24), ele ingressou na LEAP (Law Enforcement Against Prohibition), organização que pede a substituição da proibição por um sistema de regulação e controle, que julga ser mais eficaz.
Greenwald vai somar a consultoria ao trabalho no blog The Intercept, financiado pelo dono do site eBay Pierre Omydiar. Ele também estrela o documentário "Citizen Four" (sem data de estreia no Brasil), de Laura Poitras, sobre as revelações de Snowden e que estreou nos Estados Unidos em outubro.
Em entrevista à Folha na mesma semana em que o Congresso americano barrou a reforma da espionagem da NSA, o jornalista chamou o presidente Barack Obama de hipócrita. "Ele é um dos vilões dessa história".
Leia trechos a seguir:
Reforma da NSA
Nunca esperei que fosse haver uma reforma de verdade. Desde o 11 de Setembro, o governo usa o terrorismo como desculpa para fazer o que quer. Não esperava que a premissa da vigilância em massa fosse derrotada pelo governo responsável por ela. A pressão virá de outros países, de empresas e de indivíduos.
Obama
Ele tem sido completamente hipócrita. Criticou duramente a NSA em campanha, mas ela está espionando muito mais gente inocente em mais países do que na administração Bush. Obama é um dos vilões dessa história.
Asilo brasileiro a Snowden
As eleições presidenciais no Brasil e os três anos de residência que ele recebeu da Rússia tornaram a questão menos urgente. Mas ainda é importante o Brasil responder, apesar de me parecer que o governo está mais inclinado a reatar relações com os EUA.
Documentário
O filme é importante porque faz com que as pessoas vejam o que aconteceu enquanto estava acontecendo e construam sua opinião sobre o vazamento dos documentos da NSA.
Pesquisa sobre drogas
Em 2008, o instituto Cato [think tank norte-americano] me convidou a fazer uma pesquisa sobre os efeitos da descriminalização em Portugal.
As evidências são impressionantes. Primeiro, que colocar usuários na prisão é contraproducente e um desperdício de recursos. Se você parar de tratar drogas como algo da esfera criminal e passar o caso para a esfera da saúde, pode começar a solucionar o problema em vez de piorá-lo.
Defesa da legalização
Há quase cem anos, os EUA proibiram a produção e o consumo de álcool e criaram uma rede de crime organizado que ganhou muito dinheiro e espalhou crimes relacionados a gangues. Quando o álcool foi legalizado novamente, esse tipo de crime desapareceu. É a mesma coisa com as drogas.
Se você parar de investir tanto dinheiro em processar e prender usuários, terá mais recursos para campanhas educativas e para aconselhamento. Isso fez diminuir o uso entre os mais jovens em Portugal.
Relação com financiador
Encontramos alguém com uma quantidade extraordinária de dinheiro para financiar o blog. Omidyar nunca tentou barrar nenhuma reportagem, mas ele queria fazer parte. [a postagem diz que ele queria ter controle absoluto sobre os gastos, o que inviabilizava certas empreitadas]. Folha, 25.11.2014.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Licença para matar nos confins da Índia: Lei dá carta branca para soldados e policiais

Por GARDINER HARRIS

MAYAI LEIKAI, Índia - Uma dúzia de soldados arrombou as portas de uma pequena casa no meio da noite, arrastou Thangjam Manorama para um quarto e começou a torturá-la. Seu irmão mais velho tentou detê-los e foi duramente espancado. Sua mãe se levantou para defendê-la, mas levou uma pancada e desmaiou.
Depois de aproximadamente uma hora, Thangjam foi levada para fora da casa. Na manhã seguinte, a família encontrou seu corpo crivado de balas no acostamento da estrada. Os soldados alegaram que Thangjam era uma insurgente que foi baleada enquanto tentava escapar. Um médico legista disse que ela foi alvejada à queima-roupa enquanto estava deitada, e que as manchas em seu vestido eram de sêmen, mas os tiros em sua vagina impossibilitaram a comprovação de estupro. Não havia dúvida sobre os responsáveis: os soldados não fizeram nenhum esforço para esconder seus rostos.
Uma década depois, ninguém foi preso ou acusado pelo crime. Ativistas, advogados e outras pessoas dizem saber exatamente o motivo: uma lei da era colonial em vigor na periferia da Índia que dá total imunidade aos soldados indianos em tribunais civis para todos os tipos de crimes cometidos, incluindo o estupro.
Defensores de direitos humanos há anos pedem a revogação da lei, conhecida como Lei de Poderes Especiais das Forças Armadas. Mas a lei resiste. Sendo a maior democracia do mundo e berço de Mohandas K. Gandhi, pioneiro da resistência pacífica, a Índia há muito tempo é considerada umas das nações mais progressistas do mundo, com sólidos programas de combate à pobreza e esforços para fornecer benefícios especiais às comunidades marginalizadas. O país tem atualmente 168 entidades estaduais e federais de defesa de direitos.
Porém, uma realidade mais sombria se esconde por trás dessa imagem progressista, especialmente em localidades de difícil acesso. Na Caxemira, há milhares de sepulturas sem identificação em cemitérios secretos criados pelo Exército e pela polícia para esconder seus crimes. Mesmo quando autoridades civis confirmam que inocentes foram assassinados, não acontece nada.
"Temos todas essas importantes instituições de direitos humanos, mas ninguém na Índia consegue justiça quando o Estado assassina um membro de sua família", disse Henri Tiphagne, presidente do conselho do Fórum Asiático para os Direitos Humanos e o Desenvolvimento, com sede em Bangcoc. Comissões do governo têm repetidamente recomendado que a lei seja revogada, mas o Exército da Índia tem minado todos esses esforços.
"Se não tivéssemos essa proteção constitucional, você gostaria que fôssemos arrastados para um tribunal por acusações pequenas?", disse o general J. J. Singh, chefe do Exército, em uma entrevista coletiva em 2005. A lei está em vigor em grande parte do nordeste da Índia, uma protuberância territorial que às vezes não passa de 22 km de largura, contornando o norte e o leste de Bangladesh A ampla variedade de idiomas, culturas e animosidades da região há décadas alimenta revoltas sangrentas.
Soldados e policiais nem se preocupam em esconder as provas quando assassinam e estupram inocentes, disse Babloo Loitongbam, fundador da Human Rights Alert, em Imphal. "A liderança política e o Judiciário criaram um ecossistema onde a matança patrocinada pelo Estado é rotineira, e eles fazem isso com total insensibilidade", disse Loitongbam.
Uma investigação realizada no ano passado por uma comissão nomeada pela Suprema Corte da Índia, envolvendo seis casos representativos no Estado de Manipur, encontrou explicações oficiais para as mortes tão desprovidas de bom senso e em desacordo com os indícios disponíveis que a conclusão foi de que as vítimas foram todas assassinadas. Ainda assim, ninguém foi preso. Um dos agentes suspeitos recebeu a mais elevada condecoração indiana em tempos de paz, por bravura.
O ministro-chefe de Manipur, Okram Ibobi Singh, não respondeu a telefonemas para comentar o assunto. Um assessor recusou um pedido de entrevista com o ministro do Interior de Manipur, Gaikhangam Gangmei, encarregado de supervisionar a polícia. Os esforços de associações de vítimas, bem como a investigação da Suprema Corte surtiram efeito, disse Loitongbam, do Human Rights Alert.
Os policiais e soldados antes matavam centenas de pessoas todo ano; neste ano, a cifra caiu drasticamente. Viúvas formaram a Associação Manipur de Famílias de Vítimas de Execuções Extrajudiciais para ajudar as mulheres a obterem justiça.
A associação registrou 1.528 assassinatos cometidos por policiais entre 1979 e 2012, o que representa apenas uma fração das execuções ocorridas na Caxemira no período, mas suficiente para afetar a maioria das comunidades.
O Ministro da Defesa, Arun Jaitley, disse em junho que a lei de imunidade permanecerá em vigor até que a paz esteja assegurada. NYT, 12.08.14.
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quinta-feira, 22 de maio de 2014

Viva o ócio brasileiro: Sociólogo italiano Domenico de Masi elogia em novo livro o fato de, graças aos índios, ideal da eficiência não ter conquistado os brasileiros

RICARDO MIOTO -  DE SÃO PAULO
O sociólogo italiano Domenico de Masi é apaixonado pelo Brasil. Ele explica: o país, felizmente, tem um pé atrás com a idealização da eficiência e da produtividade.
O "produtivismo" seria causado pela influência dos americanos e dos economistas.
"Os americanos espalharam pelo mundo a cultura do manager'. A Itália se americanizou, por exemplo. Até na cultura. Hoje, lá, só há rock e cinema americano. Vocês têm Bossa Nova, têm novela", afirma o sociológico.
Questionado se a americanização não é um desejo de muitos dos próprios brasileiros, o autor diz que sim. "Há esse risco", afirma. "Mas veja o caso do Rio de Janeiro. Se por um lado há uma americanizada Barra da Tijuca, por outro há Copacabana."
Como aponta o sociológico italiano no seu mais novo livro, "O Futuro Chegou" (Casa da Palavra), tal resistência brasileira se deveria à influência indígena, que ele elogia profundamente.
"Os índios não trabalhavam. Não era necessário. Tudo estava na natureza. Não precisavam nem se vestir, porque o clima era bom. O brasileiro herdou do índio esse senso de ócio."
Tal elogio ao "ócio criativo" é feito há muitos anos por Domenico. Para ele, pensar é muito mais importante do que trabalhar --no limite, o ideal seria que tudo que não envolva criatividade e pensamento fosse feito por máquinas, libertando o homem.
No caso dos índios, o autor endossa uma visão generosa sobre sua vida e seu caráter.
No novo livro, escreve "qualquer branco que atracasse no Brasil, com os pés calçados em pesados sapatos de couro e com o odor fétido da longa viagem, geralmente era acolhido com generosidade por índios nus e alegres e por índias belas e sorridentes, todos predispostos a uma convivência cordial".
Em outro trecho, Domenico defende que, quando mais perto da pré-história está uma sociedade, mais distante ela está da violência.
Em entrevista, a Folha questionou o sociólogo italiano sobre isso. Não haveria aí certa inocência, certo romantismo? A ideia de bom selvagem, que remete a Rousseau, não estaria superada?
Ele aponta que não. "Na pré-história, não havia bomba atômica. Só se matava uma pessoa por vez", afirma Domenico. "O que defendo não é o retorno à vida indígena, que sejamos como eles. O que eu digo é que eles têm algo a nos ensinar."
No caso brasileiro, ele aponta outras duas consequências da influência da cultura indígena.
Uma seria uma maior facilidade para lidar com temas sexuais --no Brasil, o pecado e a culpa estariam mais distantes da cama do que em outros lugares.
A segunda seria um apreço pela estética. "Enquanto Michelangelo estava pintando a parede, os índios brasileiros estavam pintando uns aos outros", afirma.
SAMBA E SOCIOLOGIA
Tanto no livro como pessoalmente, Domenico surpreende pelo conhecimento da cultura popular brasileira.
Ao comentar a liberalidade sexual brasileira, cita Chico Buarque afirmando que "não existe pecado do lado de baixo do Equador". Ao falar sobre os índios, cita Oswald de Andrade: "Quando o português chegou/Debaixo de uma bruta chuva/ Vestiu o índio/Que pena! /Fosse uma manhã de sol/O índio tinha despido/ O português."
Quando ouve uma nova expressão que considera divertida --como o "complexo de vira-lata", de Nelson Rodrigues--, pede entusiasmado para o interlocutor anotá-la.
Uma explicação para esse interesse pelo país é que o Brasil é um raro caso, afirma Domenico, de lugar onde praticamente todos os autores de clássicos sobre o país atuaram na área da sociologia, como Darcy Ribeiro, Sérgio Buarque de Hollanda e Gilberto Freyre.
"Na Inglaterra, todas as leituras clássicas são de economistas. Nos Estados Unidos é parecido", afirma Domenico."Tenho vários amigos economistas. Conheci muitos bons economistas brasileiros, como Eduardo Giannetti e Pérsio Arida. Mas economistas são incapazes de entender que a eficiência produtiva não é o que mais importa."
Tal visão de mundo naturalmente influencia a obra do sociológico italiano.
No capítulo que dedica ao Brasil do seu novo livro, por exemplo, a história econômica do país tem como base o pensamento de Eduardo Galeano, jornalista uruguaio que atribuiu a pobreza da América Latina majoritariamente à exploração externa. Influenciaram a visão de Domenico sobre o Brasil ainda Leonel Brizola e Oscar Niemeyer, por exemplo, ambos citados no seu livro. Folha, 21.05.2014.
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quarta-feira, 23 de abril de 2014

MARCELO COELHO: Selfies

Já não estou mais sozinho; o celular roubou minha privacidade; é meu segundo eu, é a minha consciência
Muita gente se irrita, e tem razão, com o uso indiscriminado dos celulares. Fossem só para falar, já seria ruim. Mas servem também para tirar fotografias, e com isso somos invadidos no Facebook com imagens de gatos subindo na cortina, focinhos de cachorro farejando a câmera, pratos de torresmo, brownie e feijoada.
Se depender do que vejo com meus filhos --dez e 12 anos--, o tempo dos "selfies" está de todo modo chegando ao fim. Eles já começam a achar ridícula a mania de tirar retratos de si mesmo em qualquer ocasião. Torna-se até um motivo de preconceito para com os colegas.
"Fulaninha? Tira fotos na frente do espelho." Hábito que pode ser compreensível, contudo. Imagino alguém dedicado a melhorar sua forma física, registrando seus progressos semanais. Ou apenas entregue, no início da adolescência, à descoberta de si mesmo.
A bobeira se revela em outras situações: é o caso de quem tira um "selfie" tendo ao fundo a torre Eiffel, ou (pior) ao lado de, sei lá, Tony Ramos ou Cauã Reymond.
Seria apenas o registro de algo importante que nos acontece --e tudo bem. O problema fica mais complicado se pensarmos no caso das fotos de comida. Em primeiro lugar, vejo em tudo isso uma espécie de degradação da experiência.
Ou seja, é como se aquilo que vivemos de fato --uma estadia em Paris, o jantar num restaurante-- não pudesse ser vivido e sentido como aquilo que é.
Se me entrego a tirar fotos de mim mesmo na viagem, em vez de simplesmente viajar, posso estar fugindo das minhas próprias sensações. Desdobro o meu "self" (cabe bem a palavra) em duas entidades distintas: aquela pessoa que está em Paris, e aquela que tira a foto de quem está em Paris.
Pode ser narcisismo, é claro. Mas o narcisismo não precisa viajar para lugar nenhum. A complicação não surge do sujeito, surge do objeto. O que me incomoda é a torre Eiffel; o que fazer com ela? O que fazer de minha relação com a torre Eiffel?
Poderia unir-me à paisagem, sentir como respiro diante daquela triunfal elevação de ferro e nuvem, deixar que meu olhar atravesse o seu duro rendilhado que fosforesce ao sol, fazer-me diminuir entre as quatro vigas curvas daquela catedral sem clero e sem paredes.
Perco tempo no centro imóvel desse mecanismo, que é como o ponteiro único de um relógio que tem seu mostrador na circunferência do horizonte. Grupos de turistas se fazem e desfazem, há ruídos e crianças.
Pego, entretanto, o meu celular: tiro uma foto de mim mesmo na torre Eiffel. O mundo se fechou no visor do aparelho. Não por acaso eu brinco, fazendo uma careta idiota; dou de costas para o monumento, mas estou na verdade dando as costas para a vida.
Não digo que quem tira a foto da cerveja deixe de tomá-la logo depois. Mas intervém aí um segundo aspecto desse "empobrecimento da experiência". Tomar cerveja não é o bastante. Preciso tirar foto da cerveja. Por quê?
Talvez porque nada exista de verdade, no mundo contemporâneo, se não for na forma de anúncio, de publicidade. Não estou apenas contando aos meus seguidores do Facebook que às 18h42 de sábado estava num bar tomando umas. Estou dizendo isso a mim mesmo. Afinal, os meus seguidores do Facebook, sei disso, não estão assim tão interessados no fato.
Não basta a sede, não basta o prazer, não basta a vontade de beber. Tenho de constituí-la como objeto publicitário. Preciso criar a mediação, a barreira, o intervalo entre o copo e a boca.
Vejam, pergunto a meus seguidores inexistentes, "não é sensacional?". Eis uma cerveja, a da foto, que nunca poderá ser tomada. A foto do celular imortaliza o banal, morrerá ela mesma em algum arquivo que apagarei logo depois.
Não importa; fiz meu anúncio ao mundo. Beber a cerveja continua sendo bom. Mas talvez nem seja tão bom assim, porque de alguma forma a realidade não me contenta.
A imagem engoliu minha experiência de beber; já não estou sozinho. Mesmo que ninguém me veja, o celular roubou minha privacidade; é o meu segundo eu, é a minha consciência, não posso andar sem ele, sabe mais do que nunca saberei, estará ligado quando eu morrer.
Talvez as coisas não sejam tão desesperadoras. Imagine-se que daqui a cem anos, depois de uma guerra atômica e de uma catástrofe climática que destruam o mundo civilizado, um pesquisador recupere os "selfies" e as fotos de batata frita.
"Como as pessoas eram felizes naquela época!" A alternativa seria dizer: "Como eram tontas!". Dependerá, por certo, dos humores do pesquisador.coelhofsp@uol.com.br
Folha, 23.04.2014

terça-feira, 15 de abril de 2014

Pesquisas veem lado bom da maldade

Característica negativa pode gerar resultado positivo
Por NATALIE ANGIER
Depois de passar décadas concentrados em características típicas do mau comportamento, como agressividade, egoísmo, narcisismo e cobiça, cientistas voltaram sua atenção para o tema mais sutil da maldade -o impulso de punir, ferir, humilhar ou constranger outra pessoa, mesmo quando nada se ganha e pode ser preciso pagar pelas consequências.
Psicólogos estão investigando a maldade como uma característica negativa, um lapso de conduta que deveria ser embaraçoso, mas que frequentemente é sublimado como virtuosismo.
Por sua vez, teóricos do evolucionismo estão estudando o que pode ser considerado o lado bom da maldade e seu possível papel na origem de características admiráveis como espírito de cooperação e senso de justiça.
A nova pesquisa transcende noções mais antigas de que somos basicamente selvagens brutos e egoístas, assim como sugestões mais recentes de que os humanos anseiam inerentemente por amor e laços. Em vez disso, a pesquisa conclui que o vício e a virtude podem estar estreitamente ligados.
No "Psychological Assessment", David K. Marcus, da Universidade Estadual de Washington, e seus colegas descreveram um estudo que elaboraram para avaliar diferenças individuais em relação à maldade, envolvendo 946 estudantes universitários e 297 adultos.
Os participantes disseram o quanto concordavam com sentimentos como "Se meu vizinho reclamasse da aparência do meu quintal, eu me sentiria tentado a deixá-lo ainda mais descuidado só para irritá-lo".
Os pesquisadores determinaram que os homens geralmente eram mais malévolos que as mulheres e que adultos jovens eram mais malévolos que os mais velhos.
Há muito tempo, teóricos do evolucionismo se debruçam sobre as origens e a finalidade da maldade, e um novo relatório sugere que, às vezes, a maldade pode gerar o bem. Patrick Forber, da Universidade Tufts, e Rory Smead, da Universidade Northeastern, ambas em Massachusetts, criaram um modelo computadorizado de jogadores virtuais que se desafiam em rodadas até o jogo decisivo. De acordo com as regras, o Jogador A decidia como um pote de dinheiro devia ser partilhado com o Jogador B. Se B concordasse com a divisão, ambos receberiam a porção combinada; se B recusasse a oferta, nenhum jogador receberia dinheiro.
Os competidores tinham de seguir uma de quatro estratégias. Estas incluíam desde a abordagem afável de "quando você é o Jogador A, você divide meio a meio, mas no papel do Jogador B você aceita qualquer oferta, por pior que seja", até a malévola "quando você é A, você faz uma oferta mesquinha, mas no papel de B você recusa uma oferta mesquinha". Os pesquisadores então deixaram os jogadores formarem grupos e ficaram surpresos com os resultados.
Embora grupos de jogadores extremamente malévolos ou egoístas tenham se desfeito rapidamente, e sociedades rigidamente justas fossem rapidamente desestabilizadas por influxos dos egoístas, os indivíduos flexíveis provaram não só que conseguiam conviver com os tipos malévolos, como a presença dos malévolos tinha o efeito de aumentar a taxa de trocas justas entre os afáveis. O doutor Smead disse que aparentemente a "integridade funciona como uma defesa contra a maldade".
Os resultados refletem outra pesquisa. Omar Tonsi Eldakar, da Universidade Nova Southeastern, na Flórida, estuda o elo entre comportamento cooperativo e punição egoísta.
Usando modelos da teoria dos jogos, ele demonstrou que quando jogadores egoístas, a fim de lucrar ao máximo, punem regularmente outros jogadores egoístas ou os excluem do grupo, o resultado líquido é um declínio geral de trocas egoístas, o que leva a um estado razoavelmente estável.
"É como a máfia", comparou ele. "Eles acabam reduzindo a criminalidade nas áreas em que moram.". Folha, 15.04.2014

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Racionamento de sexo: Em comunidade de Campinas, maridos agressivos ficam sem bilhar, futebol e... na seca

GIOVANNA BALOGH - DE SÃO PAULO
Nada de sexo, cerveja no bar nem partidas de bilhar ou futebol. Para grande parte dos homens, ficar sem apenas um desses itens já é uma verdadeira tortura. Em uma comunidade carente do bairro Jardim Columbia, em Campinas (a 99 km de SP), esse é um perigo constante.
Manter os companheiros "na seca" foi a saída encontrada pelas mulheres do local para puni-los por agressões físicas ou verbais.
A ideia foi reduzir os recorrentes casos de violência doméstica o que, segundo moradores, tem dado certo.
O chamado período de "disciplina", onde os homens são privados de sexo ou qualquer atividade de lazer, dura 15 dias e vale para todas as 200 famílias da comunidade que, por coincidência ou não, chama Menino Chorão.
A líder comunitária e cozinheira Maria do Carmo Pereira de Sousa, 44, diz que no bairro não existe o ditado "em briga de marido e mulher não se mete a colher". "Aqui todo mundo se mete e interfere."
Ela diz que a medida foi adotada há cerca de dois anos e só tem dado resultado porque são as próprias mulheres quem fiscalizam se o castigo está sendo cumprido.
"Se o meu companheiro está em disciplina e toma cerveja no bar com um amigo, a mulher dele vai puni-lo também deixando de fazer sexo com ele", diz Maria do Carmo, que faz reuniões quinzenais com as vizinhas para discutir os casos de agressão.
Ela, que é mais conhecida como Carmem, afirma que também foi vítima de violência doméstica quando vivia em Pernambuco com o pai dos seus sete filhos.
"Apanhei muitos anos sem saber o motivo. Muitas mulheres passam por isso diariamente e não sabem como se defender", diz a líder comunitária que vai contar hoje sobre essa experiência no "I Fórum sobre Violência contra a Mulher: Múltiplos Olhares", a partir das 9h na Unicamp.
Dono do único bar da comunidade, Ualas Conceição dos Santos, 24, diz que nunca agrediu a mulher, mas que vê muitos homens proibidos de frequentar seu estabelecimento. "Aqui quem manda são as mulheres. A disciplina' funciona e acho bom pois as mulheres têm sido muito maltratadas", afirma.
Na comunidade, é difícil achar um homem que fale abertamente que ficou de "castigo". O técnico em refrigeração, Michel Nascimento Barbosa, 23, aprova a "disciplina" e diz que já enfrentou as restrições de lazer e de sexo. "Foi ruim, mas elas estão certas", diz ele, comedido.
REINCIDÊNCIA
Em caso de reincidência, o agressor também pode apanhar. "Ele pode ser amarrado e a mulher bate nele na frente de todo mundo", diz.
Nos casos mais graves, o homem é expulso da comunidade. Segundo ela, já ocorreram quatro expulsões e as vítimas escolhem se desejam ficar no local ou ir embora com o agressor. "Infelizmente, algumas foram com eles."
A delegada Maria Cecília Favero Lopes, da Delegacia de Defesa do Direito da Mulher, desconhecia a justiça feita por conta própria das mulheres do Menino Chorão.
Segundo ela, a recomendação é que as vítimas de violência doméstica denunciem os casos e, se for necessário, solicitem medida protetiva prevista na Lei Maria da Penha. "O homem que for agredido pela mulher também deve procurar uma delegacia e relatar o caso", diz a delegada.
De acordo com dados da Secretaria de Estado da Segurança Pública, em 2012, foram registrados 3.108 casos de lesão corporal dolosa na DDM de Campinas. No ano passado, foram 2.242 ocorrências. A pasta não divulgou, no entanto, os números deste ano.
De Atenas à África, iniciativa já levou ao fim de guerras
DE SÃO PAULO
A greve de sexo foi a saída encontrada pelas mulheres de Atenas para promover a paz, na comédia de "Lisístrata", do dramaturgo grego Aristófanes, em 411 A.C.
Em guerra contra os espartanos e cercadas pelos inimigos, as atenienses se negaram a fazer sexo com seus maridos enquanto a paz não fosse reestabelecida. Não deu outra, a greve acabou com a guerra.
A ativista liberiana Leymah Gbowe conseguiu fazer em seu país o que mostra a comédia grega. Em 2002, ela lançou a ideia da greve de sexo na Libéria enquanto a guerra civil que seu país enfrentava não chegasse ao fim.
Apelidada de "Guerreira da Paz", Leymah teve sucesso em sua iniciativa e o conflito na Libéria chegou ao fim um ano depois.
Em 2011, Leymah foi uma das três ganhadoras do Prêmio Nobel da Paz.
Folha, 09.04.2014

terça-feira, 11 de março de 2014

Estratégia milenar do estupro

ALDO PEREIRA
Verdade que o estupro já não pesa tanto como incentivo militar. Menos disciplinadas, guerrilhas e milícias o cometem sistematicamente
Como a Terra Prometida já fosse habitada, Moisés ordenou prévia limpeza étnica como Javé exigira, mas recomendou: "Matem todas as crianças do sexo masculino e todas as mulheres que tiveram relações sexuais com homens. Deixem vivas apenas as meninas que não tiveram relações sexuais com homens, e elas pertencerão a vocês." (Números 31:17-18, "Bíblia da CNBB")
Impossível avaliar a motivação sexual em conflitos armados. Perspectiva de estupro como extensão da pilhagem deve ter facilitado muito recrutamento militar, sobretudo de mercenários sem os quais nem Roma nem Alexandre teriam criado impérios. Eurípides (c. 484-406 a.C.) dramatizou em "As Troianas" como a pilhagem de Troia abrangeu partilha de filhas e viúvas de guerreiros troianos. Lenda, sim, mas inspirada em modelos históricos e pré-históricos: quem se vangloria da própria linhagem deve temperar o orgulho com esta certeza: em perspectiva milenar, todos nós descendemos de estupradores.
Verdade que estupros já não pesam tanto como incentivo militar. Mais comum hoje é que forças armadas os proíbam e punam (embora em geral com escandalosa leniência, como nos denunciados estupros de refugiadas cometidos por militares da ONU). Menos disciplinadas, guerrilhas e milícias cometem estupro sistemático em alta escala.
Foi assim na guerra de partição da ex-Iugoslávia e tem sido no banditismo endêmico que na África se mascara como guerras civis e conflitos tribais. Estímulo incidental dissimulado: comércio de armas, controle de minas (diamantes, ouro) e outros secretos interesses extracontinentais.
Estupro estratégico não se confunde com prática oportunista como a dos estupros de dezenas de manifestantes em recentes distúrbios do Egito. A estratégia se caracteriza quando inspirada por ódio. Na invasão e subsequente ocupação da Alemanha, soldados soviéticos que violavam alemãs (estimativas vão de 100 mil a 2 milhões de vítimas) racionalizavam a brutalidade como vingança das atrocidades nazistas na URSS.
Ódio étnico conjuga animalidade com interesse político de forçar emigração ou destruir coesão familiar. Embora injusto, em muitas sociedades o estigma de estuprada causa repúdio de esposas e desqualifica solteiras para o casamento. Na ex-Iugoslávia, sérvios que violavam muçulmanas bósnias confinadas em "campos de estupro" buscavam satisfação adicional de engravidá-las com "mestiços". Em 1994, motivação semelhante agravou em Ruanda o genocídio de tútsis por hútus. Número estimativo de estupradas: entre 250 mil e meio milhão.
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) estimou haver ocorrido na República Democrática do Congo, apenas em 2009, 130-140 mil estupros, um terço das vítimas crianças, e 13% das quais com menos de 10 anos. Segundo o "American Journal of Public Health", entre 2006 e 2007 o número de estupros na RDC passou de 400 mil. A Anistia Internacional já denunciou que na Colômbia todas as facções da guerra civil praticam "estupro punitivo".
O jornal francês "Le Monde" qualificou suposta prática de estupro sistemático como "arma de destruição em massa" do governo sírio. A reputação de credibilidade de "Le Monde" decerto valida como plausíveis os horrores relatados. Mas, unilateral e hiperbólica, a denúncia parece engajada na campanha de desinformação em favor dos mercenários que a Arábia Saudita paga para desestabilizar a Síria. Afinal, estupro é também tema quente de propaganda.
Folha, 11.03.2014
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